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Rosilene Costa é professora, doutora em Literatura, ativista do Movimento Autônomo de Mães - MAMA-DF.

PL 1904 e o papel das mulheres evangélicas

Ao longo dos últimos dias, temos discutido, em diferentes círculos, o PL1904, que penaliza as mulheres vítimas de estupro que fizerem aborto. O absurdo não para em culpar a vítima, pois ele se estende até penalizar os profissionais de saúde que fizerem o procedimento. Quando a situação ficou desvantajosa, a bancada evangélica decidiu colocar um artigo para punir também o estuprador. Todos já sabemos que a votação no Portal da Câmara foi uma derrota esmagadora, pois 88% dos votantes, até 17 de junho, disseram que discordavam do projeto de lei.

Foram essas mulheres que, junto dos progressistas, disseram NÃO ao PL1904.

Sabemos que vivemos uma verdadeira guerra digital, entre progressistas e conservadores, sendo que os últimos têm saído vencedores e melhores vendedores de narrativa, isto impacta até as votações em portais das instituições, pois vence quem mobiliza mais. Então, por que neste caso, a direita conservadora evangélica não obteve êxito? Por que muitas pessoas evangélicas levantaram a voz e disseram abertamente que não concordam com essa mudança na lei?

Refletindo sobre estas questões, eu lembrei que nos anos 1990, eu participava de uma igreja onde houve o estupro de uma jovem. A moça teve a dignidade destruída por um líder daquela igreja, indo além da violação de seu corpo. A violência imperou na desconfiança e na acusação de que ela havia seduzido um homem mais velho e com poder religioso. Depois desse caso, outras tantas histórias aconteceram, sempre com a desculpa de que as jovens seduziam os homens mais velhos.  

Também recordei um de seriado que assisti, Greenleaf. A série americana é original da emissora Oprah Winfrey Network e assisti aqui no Brasil pela Netflix. A trama é sobre a história de uma família de pastores donos de uma igreja pentecostal, no estilo dessas que fazem sucesso atualmente. A série inicia com o retorno da protagonista para o enterro de sua irmã que havia se suicidado. Grace Greenleaf deixou sua família após uma tentativa de violência sexual por parte de seu tio, co-pastor da igreja de seus país. A irmã que se suicidou havia sido vítima dele, e Grace retorna para o sepultamento. A série retrata muitos momentos da vida dessa família, demonstrando os rompantes de fé e o pecado de cada personagem. Tio Mac, o abusador das sobrinhas, continuava abusando das meninas da igreja e encobrindo a violência com benesses às famílias das vítimas, numa demonstração do poder masculino e da usurpação da fé. Preciso dar spoiler: ele é desmascarado e a situação tem fim.

Como tudo isso se relaciona com o PL1904 e a votação que ele recebeu no portal da Câmara?

As igrejas evangélicas são formadas, em sua maior parte, por mulheres. São as mulheres que sustentaram o ministério de Jesus e que hoje continuam sustentando os impérios que os líderes religiosos que elegeram a bancada conservadora mantêm.

Essas mulheres, mesmo que não estejam numa posição de destaque ou de palavra final nas igrejas, sabem a opressão que todas vivem e, nos momentos que podem opinar, elas fazem isso. Foi assim nas eleições. As mulheres entenderam que para seus filhos e filhas que vivem nas periferias pudessem continuar vivos, elas precisavam mudar seu voto. E elas mudaram na solidão da urna. Muitas mulheres até hoje não podem revelar em alto e bom som em quem votaram em 2022.   

Não temos o aos dados de quem votou no Portal da Câmara, pois isso poderia nos dizer o gênero de quem se disse favorável, mas os resultados nos levam a duas hipóteses: a direita não conseguiu articular sua base para uma votação em massa ou as mulheres (especialmente as mães) evangélicas, usando o poder de voto secreto, disseram não à dupla violência que pode atingir meninas e mulheres. Sabendo que houve articulação, arriscamos dizer que as mulheres, inclusive as evangélicas, disseram não a esse horror em forma de projeto de lei.

O texto do PL1904 é todo amparado na Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776 que sustenta que os homens “são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida” (sic). A declaração e a constituição americana que a sucedeu são claramente cristãs e são de um período em que Estado e Igreja se confundiam, o que parece estar voltando a ocorrer no Brasil.

Contudo, lá e aqui, as igrejas são formadas majoritariamente por mulheres. Mulheres que sabem a violência que está dentro das casas, das igrejas e dos espaços que deveriam ser mais seguros para elas e suas filhas. Foram essas mulheres que, junto dos progressistas, disseram NÃO ao PL1904.

Não importa em que lado do duelo ideológico estejamos, sabemos da violência de gênero e das consequências dela. Podemos não assumir publicamente que o aborto é questão de saúde pública e não de cunho moral, porque o preço de assumir essa posição é alto demais para algumas de nós. Mas na intimidade do celular, mulheres de diferentes raça, classe, orientação sexual, ideologia e religião se uniram e disseram não a mais uma violência que o patriarcado impunha a nós e nossas filhas. Não retrocederemos!

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*Rosilene Costa é professora, doutora em Literatura, ativista do Movimento Autônomo de Mães – MAMA-DF.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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