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Três por Quatro

Ataques a Janja mostram incômodo com mulheres que rompem papéis de gênero, dizem especialistas

Para entrevistadas, críticas visam enfraquecer governo e revelam resistência à presença feminina em espaços de poder

Desde que Rosângela Lula da Silva, Janja, assumiu o papel de primeira-dama do Brasil, sua presença ativa na política, suas articulações diplomáticas e sua postura “fora dos moldes” do chamado “primeiro-damismo” tradicional têm provocado críticas, especialmente de setores da mídia e da extrema direita. Para especialistas ouvidas no podcast Três Por Quatro, do Brasil de Fato, essas reações revelam um incômodo profundo e estrutural com mulheres que ousam exercer poder em espaços historicamente masculinos.

“Ela incomoda sobretudo pelo fato de ser uma primeira-dama que quebra protocolos”, explica a socióloga Camila Galetti, doutora pela Universidade de Brasília (UnB). Esse protocolo “vem de um histórico de primeiras-damas de direita, como Marcela Temer e Michelle Bolsonaro, que seguiam os moldes de um primeiro-damismo ‘belo, recatado e do lar'”, indica, parafraseando a manchete de uma matéria de 2016 da revista Veja sobre Marcela Temer, esposa do ex-presidente Michel de Temer (MDB). O texto elogiava a discrição do comportamento e até das roupas da ex-primeira dama.

Segundo Galetti, Michelle Bolsonaro (PL) chegava a atuar como articuladora com o eleitorado evangélico, mas fazia isso de maneira mais discreta, “por debaixo dos panos”. Janja, ao contrário, assume uma postura pública e ativa, seja em redes sociais ou em compromissos diplomáticos. “Espera-se uma docilidade dessas mulheres, um padrão de comportamento que a Janja não aceita seguir”, resume.

Um exemplo foi sua viagem à Rússia e à China, onde participou de encontros contra a fome e teria, segundo um vazamento para a imprensa, questionado o presidente chinês Xi Jinping sobre os efeitos do TikTok. A informação foi desmentida por ministros e pelo próprio presidente Lula (PT), mas a narrativa já havia ganhado espaço no noticiário nacional, eclipsando os temas centrais da visita oficial do governo brasileiro.

“A mídia tem um papel essencial, crucial na mensagem que quer ser ada e em como essas primeiras-damas vão ser vistas pela sociedade”, afirma Galetti. “É sempre um crivo muito mais forte. […] Há sempre a intenção de agressão, seja direta ou indireta, com descrédito à forma como ela se posiciona.”

Para ela, o incômodo com a figura pública da Janja também cumpre o papel de “enfraquecer o governo” e impedir uma eventual futura candidatura da primeira-dama, como aconteceu com Michelle Bolsonaro, que se coloca como possível candidata para a presidência em 2026. “Dizem: ‘Lula está dando muita visibilidade para essa mulher’. Mas quando Bolsonaro estampou a figura Michelle na sua campanha eleitoral em 2022, era visto até com bons olhos porque ela é legitimada nesse espaço [que se espera de uma mulher]”, compara.

‘Mulheres, voltem para casa’

Para a economista Juliane Furno, comentarista do podcast, o desconforto não é apenas midiático ou simbólico. Tem raízes mais profundas: “O patriarcado, a opressão sobre as mulheres, a desigualdade sexual do trabalho, têm uma base material. […] O trabalho das mulheres é invisibilizado, é parte fundamental da constituição da sociedade capitalista.”

Ela destaca que, em tempos de crise econômica e social, essa estrutura se sente ainda mais ameaçada. “Pela primeira vez, nossa geração está vivendo pior do que a geração ada. Mas as mulheres da minha geração estão vivendo melhor do que as de nossas mães. […] Isso gera uma dupla frustração para o homem branco: de classe e de gênero. Há um ressentimento.”

“É por isso que vem esse recado: ‘Mulheres, voltem para suas casas. Não ocupem os lugares públicos de exercício do poder historicamente designado aos homens’.” A ocupação feminina em espaços de poder “modifica substancialmente a sociedade, bate em privilégios e no status quo. E vai ser respondido com agressividade”, explica Furno. “Mas no fim, o que essa reação está dizendo é: ‘Mulheres, retornem aos seus lugares de origem’.”

Essa resistência se revela até mesmo nos pequenos detalhes: a roupa, o cabelo, a maneira de falar. Para Camila Galetti, esse tipo de vigilância é uma forma de violência simbólica, que tenta reafirmar o lugar que se espera da mulher no poder, e punir quem o desafia. “Janja causa um desconforto, sobretudo no eleitorado de extrema direita, porque ela vai quebrando esse estigma. Ela promove essa quebra de protocolo e traz uma nova forma de fazer primeiro-damismo no Brasil.”

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