Para o psicólogo e pesquisador Altay de Souza, as chamadas bets (casas de apostas on-line) não deveriam ser apenas regulamentadas, mas totalmente banidas do Brasil. As apostas online se espalharam pelo Brasil com rapidez, tomando conta das camisas de futebol, das propagandas em TV aberta e das redes sociais. Mas, por trás da aparência de entretenimento, ou até mesmo de investimento, essas plataformas escondem mecanismos extremamente eficientes de gerar vício e perdas financeiras.
“Bet não é uma coisa que tem que ser regulada, tem que ser proibida”, afirmou ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato. Segundo ele, os danos já causados à saúde mental da população e à economia nacional são imensos e devem se agravar nos próximos anos, caso nada seja feito. “É como um tsunami: estamos no finalzinho dessa ressaca, para no ano que vem vir uma onda”, alerta.
Para ele, não há dúvida de que o país vive uma “epidemia“. Segundo dados de uma pesquisa realizada por sua equipe com base em projeções populacionais, cerca de 4 milhões de brasileiros já apresentam comportamento de risco relacionado ao vício em apostas online, e quase metade deles está endividada. “52% continuam jogando para tentar amortizar perdas. É colocar o peixe na boca do gato”, afirma.
Souza ainda critica o argumento de que as apostas seriam vantajosas por gerarem arrecadação de impostos. Apenas em 2024, R$ 108 bilhões foram enviados ao exterior via bets, enquanto a arrecadação de impostos ficou em R$ 1,8 bilhão: “A conta não fecha”, protesta.
Defensor de medidas rígidas como, no mínimo, as aplicadas à indústria do cigarro, o psicólogo lamenta a “falta de conhecimento dos órgãos públicos no entendimento da gravidade dos efeitos dessa disseminação de bets no Brasil”.
Influenciadores não são inocentes e têm que ser responsabilizados
O psicólogo aponta que os influenciadores digitais têm responsabilidade direta na popularização dos jogos de aposta no Brasil. Com milhões de seguidores e contratos milionários, eles participam ativamente da propagação do vício.
Segundo ele, a sensação de proximidade com influenciadores, intensificada pelas redes sociais, leva muitas pessoas a reproduzirem comportamentos de figuras que se tornaram verdadeiras referências para seus seguidores. “O influenciador é o catalisador de uma relação midiática que, na verdade, é quase uma religião. As pessoas conclamam o mesmo ‘sacramento’, os mesmos objetivos, interesses… E como é uma coisa muito mais particularizada, fica muito mais forte”, explica.
Para Souza, os criadores de conteúdo não podem alegar desconhecimento sobre o que estão promovendo. “Não existe nenhum exemplo de uma pessoa que chegou nesse ponto e é inocente. (…] Carlinhos Maia, por exemplo, não é. Tem culpa no cartório, tem que ser responsabilizado.”
A ideia de que os usuários escolhem apostar de forma livre também é criticada por Souza, que desmonta o argumento do “livre-arbítrio” frequentemente usado por influenciadores. “Você não é livre exatamente porque você não entende as regras, que são aleatórias”, indica.
Sobre a I das apostas esportivas, que gerou repercussão nas últimos semanas, o pesquisador é categórico: “Foi claramente um teatro”. “A legislação das bets começou em 2018, no governo [do ex-presidente Michel] Temer (MDB). O pessoal técnico já dizia: ‘Não faz, não libera’. Eles já sabiam”, aponta.
Um jogo programado para prender
Diferente do vício em substâncias como álcool e drogas, o vício em jogos tem natureza comportamental. Isso significa que ele não depende de um agente químico, mas da maneira como o cérebro responde aos estímulos e recompensas.
Altay explica que o funcionamento das apostas se assemelha a experimentos com ratos em laboratório. “Imagine um ratinho numa caixinha com um botão que libera comida. Com o tempo, ele entende essa relação e fica ali, apertando o botão. Aquele ambiente se torna previsível e recompensador. A bet funciona assim: no começo, você ganha, acha que está no controle, mas toda a programação vem de fora. Quem controla é a empresa, não o jogador”, compara.
Essa ilusão de controle é especialmente forte nas apostas esportivas. “A pessoa acha que tem mais domínio porque acompanha os jogos, conhece os times. Mas não tem. O algoritmo tem o a um banco de dados gigantesco que o apostador não tem. E isso é usado para induzir a aposta”, explica.
Um exemplo perverso disso é o chamado “multiplicador de odds”. Souza explica: durante um jogo, a plataforma pode oferecer apostas-relâmpago como “Se o Corinthians fizer um gol de escanteio entre os 30 e 45 minutos do segundo tempo, você ganha 10 vezes mais”. Apesar de probabilidades reais serem baixíssimas, algumas pessoas ganham, pois é parte da estratégia da empresa, e viram “embaixadoras informais” da marca, atraindo outras que, em sua maioria, vão perder.
A associação entre aposta e futebol é tão forte que afeta até o prazer de torcer. “A pessoa viciada cria um pareamento entre o jogo da bet e o futebol. Só assistir a a não ser tão legal: a graça está em assistir e apostar ao mesmo tempo”, diz o pesquisador. “Quando cai no vício, a primeira coisa é parar de apostar. Mas o jogo, sem a emoção da aposta, perde o brilho.”
Aposta não é investimento
Um dos principais enganos promovidos pelas plataformas de apostas é a ideia de que elas seriam uma forma de “investimento”. Altay de Souza rebate essa noção com dados de uma pesquisa feita em parceria com a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). O estudo simulou uma situação hipotética: quanto uma pessoa aceitaria receber daqui a um ano para abrir mão de R$ 1.000 hoje?
“A média foi cinco vezes mais. Ou seja, as pessoas só aceitariam emprestar R$ 1.000 se recebessem R$ 5.000 daqui a um ano. Nenhuma aplicação financeira oferece esse lucro. Nem o tráfico de drogas dá 500% ao ano”, afirma.
É essa mesma distorção, incentivada pelo marketing das casas de aposta, que leva alguém a apostar. “Você olha para uma renda fixa, que te dá 8% ao ano, e pensa: vou esperar um ano para ganhar R$ 80? Melhor tentar a sorte na bet.” Mas essa aposta frequentemente se transforma em um ciclo de perda contínua e desesperada tentativa de recuperação.
O impacto das apostas não se limita ao jogador. Como alerta Souza, “essas pessoas têm famílias, têm conhecidos. Há um efeito em cadeia. Todos nós já conhecemos pelo menos uma pessoa com vício patológico em bet”.
Ao contrário do vício em drogas, que pode ter marcadores biológicos, o vício em jogos afeta qualquer um. “Para jogo, não existe marcador genético. É só questão de exposição.”
Para ouvir e assistir
O BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea pelo YouTube do Brasil de Fato.