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Ketline Lu é advogada, gestora de escola, mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná, especialista em Direito C...

A luta contra a violência política de gênero

A violência política de gênero é qualquer ato ou ameaça que impeça as mulheres de exercer seus direitos políticos

Casos recentes de violência política de gênero têm suscitado importantes diálogos e discussões sobre a inclusão democrática das mulheres na política. As recentes agressões misóginas perpetradas por um deputado estadual bolsonarista contra a deputada estadual Aná Júlia (PT-PR) na Assembleia Legislativa do Paraná são um bom exemplo disso. Outro triste episódio diz respeito a ataques perpetrados – também por bolsonaristas – contra a ministra Marina Silva, durante recente audiência no Senado.

Destacar tais episódios, mais do que realizar a “vitimização” das mandatárias, é uma importante oportunidade para considerarmos a relevância da pauta política de gênero na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

A exclusão das mulheres do mundo político tem profunda relação com a visão conservadora de mundo, em que aos homens pertence o protagonismo político e às mulheres o “protagonismo nos cuidados do lar”. Essa divisão de papéis sociais tem efeitos nefastos às mulheres, pois elas ficam limitadas ao exercício de funções secundárias, com menos prestígio social, com as piores remunerações – inclusive realizando trabalhados não remunerados – e confinadas no ambiente doméstico.

Essa forma de pensar impede que mulheres desenvolvam sua cidadania de forma plena, ou seja, elas têm muito mais obstáculos a superar, dificultando sua participação inclusive no que diz respeito à vida política da comunidade à qual pertencem. Se considerarmos também questões como classe ou raça/etnia, a situação se agrava.

Portanto, as mulheres na atual sociedade brasileira são exploradas não somente em razão da sua condição de mulher, mas também pelo sistema econômico e pelo racismo estrutural. Não à toa, diversas pesquisas apontam que as mulheres – e, dentro dessa categoria, as mulheres não brancas – são as que menos ascendem profissionalmente, têm os menores salários e ocupam as piores posições na pirâmide social.

Isso, contudo, não a despercebido pelos movimentos feministas. Não foi coincidência ou concessão benevolente a promulgação da recente Lei n.º 14.192/2021, mais comumente conhecida como a Lei Contra Violência Política de Gênero. A referida lei estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, a fim de garantir sua participação em debates eleitorais.

Essa lei pode até ser motivo de comemoração em um primeiro momento. Mas se olharmos com um olhar mais crítico, veremos que essa conquista talvez não tenha sido alcançada da forma como foi amplamente noticiada e celebrada. Propomos, portanto, apresentar o conceito de violência política de gênero da Organização das Nações Unidas (ONU), a fim de o comparar com o conceito legal da violência política contra a mulher e verificar se ainda há desafios a superar.

Para a Organização das Nações Unidas(ONU), a violência política de gênero é qualquer ato ou ameaça de violência de gênero que resulte em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico às mulheres, que as impeçam  de exercer seus direitos políticos, incluindo o direito a ocupar cargos públicos, ao voto secreto, à associação e reunião, a realizar campanha livremente e a exercer sua liberdade de opinião e expressão.

Dessa ampla definição – que também não é exaustiva – podemos perceber que as vítimas são mulheres interessadas na política. Elas podem ser, portanto, eleitoras, candidatas, apoiadoras, partidárias, cabos eleitorais, funcionárias da justiça, integrantes das equipes das campanhas, representantes eleitas, profissionais da comunicação, por exemplo. Extraímos daí, também, que os possíveis agressores podem ser tanto homens ou mulheres, partidos, agentes do estado e inclusive a própria família da vítima.

Esse conceito também permite compreender que a violência política de gênero pode ser física, psíquica, sexual e que pode se manifestar em diversas formas: avaliação da aparência física ou das vestimentas das candidatas; atribuição às mulheres de candidaturas para cargos sem chances reais de eleição; registros de candidaturas de mulheres não efetivadas pelos partidos; pressão por renúncia a favor dos colegas suplentes homens; e, uma vez já eleitas, limitação de sua atuação em temas tradicionalmente considerados “masculinos”.

A violência política de gênero, portanto, impulsiona uma série de consequências negativas, como a redução da participação e da representação feminina na política; limitação da visibilidade e, consequentemente, do financiamento das campanhas femininas; renúncias forçadas e abandonos; redução do ativismo político das mulheres.

Agora, se analisamos o conceito de violência política contra a mulher, conforme escrita na lei, já na  ementa (a primeira parte de texto que uma lei apresenta, logo após seu título, e que serve para informar sobre seu conteúdo e objetivo), percebemos o uso do vocábulo no singular de “mulher”, em vez do conceito de gênero. Essa escolha não foi feita por acaso.

Ao usar o termo “mulher” no singular, a proposta demonstra total desprezo à discussão acerca das questões de gênero, reduzindo o alcance protetivo da lei a partir da ultraada perspectiva biologicista. Essa perspectiva reduz as diferenças entre gêneros, como se pessoas fossem meros corpos biológicos. A dimensão cultural e social, que também forma e estrutura os seres humanos, é desprezada.

É como se só houvesse uma categoria de “mulher”, ignorando a rica pluralidade social. Além disso, a questão de classe, importantíssima para uma sociedade tão desigual quanto a nossa, sequer é referenciada. Além das mulheres pertencentes à classe trabalhadora, são também excluídas dessa proteção as mulheres trans, o que é gravíssimo considerando que o Brasil é um dos países que mais agride e mata pessoas trans.

Se avançamos na análise, encontramos no artigo 3º dessa lei que violência contra a mulher é toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. Seu parágrafo único, reforçando a perspectiva biologicista anteriormente mencionada, vai usar o termo “sexo” em vez de “gênero”

Além disso, essa lei também promove mudanças em outras leis importantes. Convém para nossa discussão destacar a mudança promovida no artigo 326-B do Código Eleitoral, o qual define o crime de violência política contra a mulher como ato com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral, ou o desempenho de seu mandato eletivo. Em outras palavras, ao dispor dessa forma, a lei reduz drasticamente a proteção às mulheres, porque limita a incidência do crime de violência política de gênero apenas aos casos praticados contra candidatas durante sua campanha ou mandato eletivo, desconsiderando todas as outras ocasiões em que a violência política de gênero também se manifesta e todas as outras possíveis vítimas que estão fora dessas duas situações.

Esses retrocessos velados, escondidos por um discurso que diz se tratar de uma importante conquista em prol das mulheres, não são ocasionais, são opções políticas. Conferindo a autoria do projeto de lei, proposto pela deputada federal Rosangela Gomes (Republicanos/RJ), na realidade percebemos que o objetivo pode também ter sido controlar o alcance dos danos à pauta conservadora. No site do partido da mencionada deputada, há convite às mulheres a participar do movimento “Mulheres Republicanas”. Esse convite estampa o rosto da Senadora Damares Alves, que conclama mulheres a filiarem-se ao Republicanos e a “promover valores conservadores”.

Uma grotesca contradição, considerando que a visão de mundo conservadora quer justamente impedir o avanço feminino na política e negar direitos às mulheres. De mesma forma, não nos esqueçamos jamais da atuação da senadora Damares. Quando foi ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, escolheu lutar contra os direitos sexuais e reprodutivos das meninas e mulheres. Espalhou fake news contra pautas democráticas e progressistas. Nada em sua trajetória demonstra seu compromisso com as pautas feministas. Nada. Contudo, já que a participação das mulheres na política é de extrema relevância atualmente, coube à extrema direita conservadora atuar para restringir o máximo possível a proteção às mulheres.

Além da apropriação perversa das importantes pautas feministas, que am a ser usadas contra a própria conquista por mais direitos, percebemos que a extrema direita conservadora atua fortemente contra a legitimidade dos espaços políticos, contra a democratização das instituições e, por consequência, contra a própria democracia, tão arduamente alcançada pelo povo brasileiro, sempre à mercê de ataques antidemocráticos promovidos pela ala liberal-conservadora do país.

Por tudo isso, fazemos esse alerta. A luta por direitos nunca terá fim e as conquistas tão arduamente conquistadas podem ser enfraquecidas, destruídas ou até instrumentalizadas por aqueles que sempre se pam contra uma sociedade mais livre e justa. Cabe a todos nós que acreditamos na justiça social pautar e debater o tema da representatividade das mulheres na política, sempre no sentido de conquistar mais espaço e proteção. Por mais “Anas Julias” e “Marinas Silvas” na política!

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