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Esta coluna é coordenada por Barbara Pires, Bruno Vieira Borges, Mariane Pisani e Michel de Paula Soares. Debatemos diferentes temas sociais a part...

Moinho fica, ‘favela é solução’: o boxe e a cidade

Dois jovens da favela do Moinho representaram o Brasil, e o próprio Estado de São Paulo, diga-se de agem, no cenário esportivo mundial

*Por Michel de Paula Soares

Em uma entrevista realizada em 2018, para uma série chamada Cidade Partida, cujo debate girava em torno da pauta “remover favelas é uma medida necessária?”, a então vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, Marielle Franco, afirmou, em certo momento: “Favela não é problema. Favela é cidade. Favela é solução. Eu sou da favela e acho que não tem essa perspectiva de valorização de espaço na cidade onde a gente não possa ter favela.”

No Brasil, as escolas de boxe olímpico, modalidade que acompanho de perto e de dentro há cerca de dez anos, estão quase todas localizadas em comunidades, favelas, quebradas e bairros populares, em grandes metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. É um saber desenvolvido nas periferias dos centros urbanos, com protagonismo dos habitantes e moradores desses espaços. Como, por exemplo, o instituto Todos na Luta, na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro, cujo fundador, Raff Giglio, disse-me, certa vez: O boxe é uma pedagogia da favela, playboy não luta boxe.

Em São Paulo, na cidade de Taboão da Serra, região metropolitana, está localizada a equipe Gibi Esporte e Educação, comandada pelo baiano Antônio Cruz de Jesus, o popular Gibi. Ele foi atleta de alto rendimento, com agens pela seleção brasileira e bons resultados em competições internacionais, em meados dos anos 1990. Tornou-se treinador no Rio de Janeiro, quando ou a trabalhar na ONG Luta pela Paz, localizada na favela Nova Holanda, no Complexo da Maré. Em 2017 decidiu mudar-se para São Paulo, onde fundou, após comprar um terreno e construir seu equipamento, a própria equipe. O projeto ocupa um prédio de três andares, localizado em uma subida de um bairro periférico do município. Além da sede, o treinador mantém um alojamento, localizado em outro imóvel próximo à academia, alugado. Isso porque, além de realizar um trabalho de iniciação e formação com crianças e jovens do território, Gibi recebe atletas de outras academias da Bahia e, principalmente, da antiga equipe onde trabalhava, no Rio de Janeiro.

Sua equipe de competição é composta, assim, por boxeadores da Bahia, do Rio de Janeiro e do próprio entorno onde está inserida, em Taboão da Serra. A instalação de Gibi, um dos mais reconhecidos treinadores de boxe do Brasil, em uma favela na cidade metropolitana de Taboão da Serra não se deu por acaso. Segundo ele, é preciso estar nas favelas e bairros populares para se encontrar os futuros atletas.

A narrativa de Gibi nos auxilia a pensar as periferias a partir de um ponto de visto positivo, sem partir das ideias de precariedade e ausência, que, no fundo, não deixam de serem marcadores de racialização (é óbvio que há inúmeros problemas de infraestrutura, saneamento e geração de renda, mas não se pode reduzir a favela a seus problemas). Ele poderia ter escolhido se fixar em outra região, talvez em uma região central da cidade, mas sabe, de maneira empírica e intuitiva, que são nas favelas onde se encontram os futuros talentos candidatos ao sonho olímpico.

Conhecida como a última favela do centro de São Paulo, a Comunidade do Moinho tomou conta dos noticiários, no último mês, após uma série de violentas ações policiais, cujo objetivo é a expulsão de seus moradores, cerca de 600 famílias. A operação faz parte de um projeto de enobrecimento (leia-se embranquecimento) da região central, apoiada pelo mercado imobiliário e pelo poder executivo em suas escalas estadual e municipal.

Foi em julho de 2017 que o Boxe Autônomo começou a ministrar aulas e treinos de boxe na favela do Moinho, visando contemplar a participação de crianças e jovens em sua formação esportiva e pedagógica, cujo princípio é pensar o esporte e a atividade física como direitos sociais que não podem ser reduzidos à lógica excludente do mercado. Dezenas de jovens e crianças aderiram ao projeto. Dentre estes, Marcela Barros, nascida em um pequeno distrito rural no Paraná, e Kelvy Alecrim, cuja família acabara de chegar do interior da Bahia à capital paulistana. Após algum tempo de dedicação e treinamento, ambos se destacaram no cenário do boxe olímpico competitivo, cujos resultados os levaram à seleção brasileira, com destaque para três participações em torneios internacionais, inclusive com a conquista de medalhas. Ou seja, dois jovens da favela do Moinho que representaram o Brasil, e o próprio Estado de São Paulo, diga-se de agem, no cenário esportivo mundial.

Tudo isso para dizer que favela não é território, favela é cidade. Favela é comunidade, no melhor sentido do termo, de convívio, ajuda mútua e relação com o Outro. Características esvaziadas pelo modelo de moradia burguês. No Moinho vivem trabalhadores e trabalhadoras, mães, estudantes, esportistas, artistas de múltiplas áreas, todos e todas essenciais para o desenvolvimento da região central. Lutar pela sua permanência, condições dignas de moradia e o aos serviços do Estado é lutar por uma cidade mais inclusiva, humana e cidadã.

Iniciamos a coluna com uma afirmação de Marielle Franco, terminaremos com ela. Dessa vez, uma agem de sua dissertação de Mestrado, defendida em 2014 na Universidade Federal Fluminense:

“Contudo, independente da forte estigmatização socioespacial, a favela também é marcada por características que a colocam em contradição com a ideologia dominante. Em seu seio, forma-se um conjunto de movimentos sociais e instituições do terceiro setor que movimentam milhares de moradores, seja em torno de projetos educacionais, culturais, políticos, esportivos ou outros, seja em torno de ações políticas reivindicatórias. Esse processo gera contradições e problemas. Mesmo marcada por níveis elevados de subemprego e de informalidade nas relações de trabalho, baixo grau de soberania frente ao conjunto da cidade, fraco investimento social e outros problemas da mesma ordem, a favela acaba por apresentar uma vida, ações e perspectivas que a colocam, em determinados momentos ou circunstâncias, como um dos protagonistas no desenvolvimento da própria cidade.”

*Michel de Paula Soares é doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU/USP e treinador do Boxe Autônomo.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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