Num episódio histórico, México realizou eleições neste domingo, 1º de junho, para escolher diretamente os membros do Poder Judiciário. Pela primeira vez, mais de 2.600 cargos em diferentes instâncias judiciais — nos níveis federal e estadual — serão renovados com base nos resultados das urnas. O redesenho institucional será concluído em 2027, quando o restante do Judiciário atual também será submetido à votação.
Essas eleições são resultado da Reforma Judicial aprovada em setembro de 2024, originalmente proposta pelo ex-presidente Andrés Manuel López Obrador e impulsionada pela atual presidenta, Claudia Sheinbaum, após sua vitória eleitoral, há exatamente oito meses.
A partir de agora, todas as instâncias do Judiciário mexicano arão a ser escolhidas por voto popular: desde o juiz do menor distrito local até os nove ministros da Suprema Corte de Justiça da Nação (SCJN). Sheinbaum classificou o processo como “uma eleição histórica” e destacou que cerca de 13 milhões de cidadãos foram às urnas, apesar de mais de 100 milhões de pessoas estarem aptas a votar.
“Quase 13 milhões de mexicanas e mexicanos saíram às ruas para exercer, pela primeira vez na história, seu direito de decidir quem devem ser os ministros, magistrados e juízes”, declarou em um vídeo divulgado pouco depois de o Instituto Nacional Eleitoral (INE) apresentar seu primeiro boletim eleitoral. Em resposta às críticas de setores da oposição à reforma, Sheinbaum apontou o atual Judiciário como responsável por beneficiar o crime organizado.
“Não podemos esquecer que o Judiciário atual, que alguns defendem, foi responsável por favorecer integrantes do crime organizado e liberar bilhões de pesos ligados ao crime de colarinho branco.” Ela também destacou que o sistema judicial vigente é marcado pelo nepotismo.
“Metade do Judiciário atual chegou ao cargo por ser parente de algum magistrado, e não por mérito numa carreira judicial.”
A eleição direta de juízes é uma prática incomum em todo o mundo. As poucas experiências existentes tendem a se limitar a setores específicos do sistema judicial. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas juízes estaduais ou locais são eleitos. Já na Bolívia, desde 2011, as mais altas autoridades judiciais do país são escolhidas por voto popular.
No México, antes de serem submetidos à votação popular, os mais de 7.700 candidatos que disputaram cargos no Judiciário precisaram atender a uma série de critérios de idoneidade, além de ar por diversos filtros, incluindo avaliações realizadas por comissões de controle formadas por representantes dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo.
Comparecimento dos eleitores
O governo apostava que o comparecimento dos eleitores ficaria em torno de 20% do eleitorado, considerando que o voto não é obrigatório no México. A meta era superar os quase 18% alcançados por Andrés Manuel López Obrador em 2022, quando convocou o referendo revogatório.
No entanto, o nível de participação foi consideravelmente menor do que o esperado. Guadalupe Taddei, presidenta do Instituto Nacional Eleitoral (INE), informou que a taxa de participação estimada ficou entre 12,57% e 13,32%, embora a contagem final dos votos possa levar até duas semanas.
A oposição ao governo de Claudia Sheinbaum promoveu uma intensa campanha pelo boicote às eleições, argumentando que submeter a escolha de juízes ao voto popular coloca em risco a independência do Judiciário em relação aos demais poderes do Estado, além de abrir espaço para a entrada de setores ligados ao crime organizado no sistema de justiça.
Essa situação foi agravada pelo fato de que as eleições foram especialmente complexas. Não apenas por ser a primeira vez em que membros do Judiciário foram escolhidos por voto direto, mas pela natureza do que estava em disputa, o que adicionou uma camada extra de dificuldade.
Apesar do enorme poder que o Judiciário exerce sobre a vida cotidiana — decidindo sobre temas fundamentais como a liberdade ou a guarda dos filhos —, a histórica opacidade dessa instituição fez com que grande parte da população não compreendesse com clareza as funções específicas de cada instância.
Foram utilizadas ao menos seis cédulas com dezenas de nomes, muitos deles desconhecidos do público. Todos esses elementos fizeram da participação cidadã um dos principais desafios do processo, ajudando a explicar, em parte, o baixo comparecimento às urnas.
Na segunda-feira (2), a Secretária do Interior do México, Rosa Icela Rodríguez, disse que as eleições representaram um o na democratização eleitoral.
“A mensagem que o México está enviando ao mundo hoje é clara: a justiça também é uma questão do povo, porque, como disse a presidente Claudia Sheinbaum, o que queremos é que os ricos, os pobres, os que vivem no norte, os que vivem no sul, que todos tenham o mesmo o à justiça”, afirmou.
A batalha pela democratização
A reforma do sistema judiciário é um dos projetos mais ambiciosos e controversos do processo da Quarta Transformação. Durante o governo de Andrés Manuel López Obrador, o Judiciário — em especial a Suprema Corte de Justiça da Nação (SCJN) — tornou-se um dos principais focos de oposição às mudanças promovidas por sua istração, barrando diversas de suas iniciativas, especialmente na área de desenvolvimento.
Em nome da defesa da independência do Judiciário, grande parte da oposição política e midiática ao governo de López Obrador foi articulada, chegando inclusive a contar com o apoio da embaixada dos Estados Unidos. Por outro lado, a democratização do Judiciário consolidou-se como uma das principais bandeiras e demandas do movimento da Quarta Transformação.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a analista política e jornalista Alina Duarte destacou que, por trás dessas eleições judiciais, houve uma “gigantesca tarefa militante” com o objetivo de evidenciar que o Judiciário não é “um poder neutro, como costuma ser apresentado”. Ela também enfatizou que, embora a reforma possa ser aperfeiçoada, representa um avanço concreto rumo a uma maior participação popular, ao incorporar temas geralmente ausentes do debate político.
“Foi uma tarefa titânica tornar visível que o Judiciário não era esse poder neutro a serviço dos pobres, mas sim um poder a serviço dos grandes interesses”, afirmou.
Duarte também ressalta que, ao longo dos anos, a militância da Quarta Transformação atuou para revelar quem compõe o Judiciário, que interesses representa e de que forma atua. Em sua visão, foram as próprias ações dos ministros da SCJN durante os seis anos de mandato de López Obrador que ajudaram a evidenciar o que ela considera “o caráter político do Judiciário”.
“O Judiciário tem sido um instrumento das oligarquias e dos poderes de fato contra os povos que se organizam e lutam por sua emancipação. Essas eleições permitem questionar como esse poder é constituído”, argumenta.
Apesar de seus avanços e limitações, Duarte considera que a principal virtude da reforma é ter conseguido “ancorar uma dimensão das lutas emancipatórias na justiça como algo concreto e material”.
Em sua opinião, não se trata apenas de “saber quem vai compor o Judiciário”, mas de “ter um juiz trabalhista que decida a favor da classe trabalhadora ou um juiz cível que julgue em favor das mulheres, historicamente excluídas”.