O desastre climático e socioambiental que assolou o Rio Grande do Sul em 2024 revelou não apenas falhas na infraestrutura urbana, mas também o aprofundamento das desigualdades sociais, o racismo ambiental e falhas do poder público. O diagnóstico está no primeiro relatório da Anistia Internacional Brasil dedicado ao estado, lançado nesta quarta-feira (28), em Porto Alegre.
O documento, intitulado “Quando a água toma tudo, impactos das cheias no Rio Grande do Sul”, reúne análises técnicas, depoimentos de especialistas e lideranças comunitárias, além de dados sobre os investimentos públicos feitos após as enchentes que deixaram um rastro de destruição em dezenas de municípios. A apresentação do relatório contou com a participação de representantes das comunidades atingidas, especialistas e também da performance Muita Água, uma dança-denúncia encenada por Cibele Sastre, Fabiano Nunes e Juliana Vicari.
Segundo a organização, a resposta do poder público, embora mobilizada em vários níveis, foi desequilibrada. “Houve ação, mas parte considerável das medidas concentrou-se na reconstrução da infraestrutura urbana, em detrimento da adaptação climática e da redução de riscos”, aponta o relatório.

A análise dos investimentos do Fundo Financeiro do Plano Rio Grande (Funrigs) demonstra essa priorização de áreas estruturais: cerca de R$ 1,4 bilhão foi destinado à manutenção de rodovias; R$ 346 milhões ao apoio empresarial e comercial; e R$ 1,3 bilhão a obras de dragagem e desassoreamento de rios. Já os recursos para programas sociais e habitacionais foram R$ 288 milhões e R$ 518 milhões, respectivamente. A Defesa Civil, principal frente de resposta emergencial, recebeu R$ 328 milhões.
Para a diretora da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, a crise climática é também uma crise de direitos humanos. “Não basta construir pontes ou muros. É preciso garantir direitos, reparar injustiças e superar desigualdades”, afirma. Ela também revelou que houve uma tentativa frustrada de entrega do relatório ao governador Eduardo Leite (ex-PSDB, agora no PSD), sendo o material encaminhado às equipes do Executivo estadual.
Impactos previstos, ignorados e ainda urgentes
Werneck destacou que os impactos da crise foram amplamente previstos desde os anos 1980, mas ignorados por décadas em nome de outras prioridades. “Muita gente teve outras agendas, e o resultado foi esse.”
O relatório propõe medidas urgentes para reparar danos, corrigir omissões e evitar a repetição de tragédias como as inundações recentes. Para a diretora, insistir nas mesmas soluções de sempre é insuficiente. “É necessário pensar diferente, com políticas que realmente enfrentem a emergência climática e suas consequências sociais. A tragédia não é inevitável. Mas é preciso vontade política para mudar o rumo.”

Contexto social
O professor de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Lucas Konzen, destacou a importância de uma governança global conectada aos contextos locais e criticou o abandono das normas urbanas. Segundo ele, políticas habitacionais vêm excluindo moradores de vilas populares, justamente os que mais necessitam de regularização fundiária. “Porto Alegre, assim como muitos municípios da região Metropolitana, ao longo do tempo, começou a esvaziar as instituições que tinham esse papel. Há uma perda de consciência, de memória social em relação ao ambiente e às cidades em que vivemos.”
O engenheiro ambiental e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Ufrgs, Maurício Paixão, relembrou os episódios no Vale do Taquari e comentou que a região Metropolitana teve dias para se preparar. “A gente teve tempo de planejar as coisas, ainda que fosse planejar a resposta, e não a prevenção (…) A má gestão dos recursos hídricos, do território e das cidades, de modo geral, nos conduz para esse cenário de aumento de desastres.”
Ele alertou que eventos extremos como os atuais tendem a se repetir com mais intensidade, e que aprender com eles é essencial para evitar novas tragédias.

Comunidades abandonadas
Durante o evento, representantes de comunidades afetadas denunciaram abandono por parte do Estado. “A água levou o nosso sagrado. A água levou tudo. A única política que chegou até nós, um ano depois, foi a de cestas básicas. De reconstrução, nada. É como se o povo de terreiro fosse feito só de estômago. A maioria ainda não conseguiu retomar suas atividades, e os que voltaram foram por iniciativa própria e apoio da comunidade”, desabafou Baba Diba de Iyemonjà, babalorixá no Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô e coordenador nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro).
Rogério Machado, conhecido como Jamaica, liderança do Quilombo dos Machados, no bairro Sarandi – uma das regiões mais afetadas de capital gaúcha – afirmou que nenhuma melhoria foi implementada desde o desastre. Ele também criticou o Programa Compra Assistida, que oferece indenizações para a saída das famílias das áreas atingidas, segundo ele, não respeita os laços históricos com o território. “Eles chegam com tudo pronto e não escutam o que o povo quer.”
A cientista social, mestra e doutoranda em sociologia, cantora, percussionista e militante Nina Fola afirmou que o empobrecimento das populações vulneráveis é parte de um projeto político deliberado. Ela defendeu novas formas de governança, com participação ativa das comunidades e reconhecimento de sua dignidade. “Enquanto a gente não falar de política pública, de governança, de novas lideranças e novas formas de operar a gestão pública, a gente vai continuar sendo tratado como coisa.”

Kuaray Papa, cacique da aldeia guarani Tekoa Pekuruty, em Eldorado do Sul, contou como a enchente afetou a vida da comunidade: “Perdemos tudo.” A diretora da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Pekuruty, Márcia Luísa Tomazzoni, que acompanhou o cacique, relatou que todos tiveram que sair do local por ordem da Defesa Civil. “Teve todo o processo de voltar para o lugar, refazer a aldeia em outro ponto da BR-290.” Ela também lembrou que a comunidade está há décadas sem o à energia elétrica.
Relatório sugere mais participação
O relatório da Anistia Internacional enfatiza a necessidade de políticas públicas que priorizem a equidade, a inclusão e a participação das comunidades vulneráveis na tomada de decisões, com o objetivo de prevenir futuras tragédias e garantir os direitos humanos de todos.
Entre as recomendações estão o fortalecimento e a integração da governança estadual para a implementação de um plano diretor resiliente, com foco em gestão integrada de riscos e saneamento básico, sistemas de alerta precoce e íveis, educação ambiental, conscientização e capacitação em gestão de riscos.
Como mensagem final aos poderes executivos, Jurema Werneck foi enfática: “Trabalhem! Trabalhem, porque um ano depois muita coisa ainda está no mesmo lugar. É preciso trabalhar com transparência, com participação. As populações afetadas têm o direito — e têm soluções — para apresentar. Que façam isso cumprindo os direitos humanos.”
