Um ano depois, a enchente de 2024 ainda provoca debates e deixa marcas visíveis em todo o estado do Rio Grande do Sul. E não foi diferente nas redações de jornalismo. O estúdio da rádio Guaíba, no centro de Porto Alegre, com seu janelão virado para a calçada e que permitia que o público assistisse os debates, não foi retomado até agora.
O cenário da enchente nas redações foi tema do seminário “Jornalismo e Crise Climática – Um Ano das Enchentes no Rio Grande do Sul”, organizado pela Repórteres sem Fronteiras (RSF) e a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), nesta quarta-feira (21), no Instituto Goethe, em Porto Alegre.

A editora do Correio do Povo, jornalista Mauren Xavier, lembrou que o prédio do jornal foi evacuado no dia 5 de maio do ano ado e que a redação já havia experimentado situação semelhante, mas de menor proporção, nos anos de 2023 e 2016. Os jornalistas dispunham de galochas e de jardineiras (roupa emborrachada para pescaria), mas não contavam com barcos e nem com protocolos sobre como agir em situação de emergência climática. Nenhuma simulação havia sido realizada, apesar da enchente em Porto Alegre ser um episódio recorrente. Situação parecida foi narrada no seminário pelo jornalista Luciano Velleda, do site Sul 21.

A falta de protocolos e de treinamento dos jornalistas para o enfrentamento de uma situação adversa, como foi a enchente, foram os pontos altos do seminário. As redações precisam criar protocolos de segurança e ter itens de proteção para o trabalho. Não só as redações precisam estar preparadas como também o pessoal de Tecnologia da Informação (TI), porque toda a estrutura de comunicação depende dessa equipe.
Apesar de todos os aspectos desfavoráveis, em um ponto a enchente agiu de forma positiva porque ela impulsionou a transformação digital de muitos veículos de comunicação. Diante da impossibilidade de os jornais serem impressos, como foi o caso do Correio do Povo, que teve 16 edições somente na internet, todos os veículos mantiveram seus sites atualizados minuto a minuto, oferecendo um serviço de utilidade pública ao informar sobre doações, endereços de abrigos, áreas alagadas, áreas secas e localização de pessoas que aguardavam resgate. Um veículo de comunicação que tinha 7,5 mil seguidores antes da enchente pulou para 100 mil em 24 horas.
A cobertura de meio ambiente
A enchente de 2024, como uma das consequências da crise climática global, foi o alvo da apresentação do jornalista Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente (Agapan). Lacerda salientou a diferença em cobrir informações sobre meio ambiente e fazer jornalismo ambiental. No primeiro caso, as informações divulgadas se referem a fatos e a serviço. No segundo, o contexto é ampliado para dar voz a vários atores, especialmente aos especialistas das áreas transversais para salientar a integração entre diversas áreas do conhecimento.
O representante da Agapan destacou ainda que 10% da população mundial, formada por um pequeno grupo de ricos e bilionários, é responsável por 52% das emissões de CO2 do planeta. Enquanto 90% da população, formada por pobres e remediados, emite apenas 7% de carbono. Comparando os números, Lacerda disse que levaria 1.500 anos para os mais pobres produzirem a mesma emissão de gases poluentes hoje produzida pelos ricos. A emissão de CO2 é uma das principais causas do aumento da temperatura na Terra e que coloca em risco todos os seres vivos. É preciso mudar nosso modo de produzir e de consumir.
Outro aspecto que também é responsável pelo aquecimento global e a enchente no Rio Grande do Sul, é o desmatamento e o afrouxamento da legislação ambiental. Essa questão foi abordada pela jornalista e professora Ilza Girardi. “O Rio Grande do Sul é marcado pela desconstrução da legislação ambiental, autorizando a retirada de mata ciliar e avançando sobre áreas protegidas”, afirmou.
O fotógrafo Anselmo Cunha, que cobriu a enchente pela agência Press e teve uma foto sua premiada no World Press Photo, também participou do seminário e deu um depoimento sobre a sua experiência no evento. “A fotografia ajuda a contar a história e humaniza os fatos, mostra quem é a pessoa e ela a a existir, deixa de ser apenas um número.” Cunha trabalhou com poucos recursos e não tinha drone. Sua foto premiada, de uma aeronave em solo cercada de água no aeroporto de Porto Alegre (que estava fechado), foi feita de dentro de um avião do Exército.
Pesquisa da Ajor
O jornalista Marcelo Fontoura, da Ajor, apresentou no seminário o resultado da pesquisa “Resiliência Climática”, sobre as estratégias dos veículos de comunicação e o comportamento dos jornalistas na cobertura da enchente de maio de 2024. A pesquisa sobrepôs o mapa de áreas alagadas com a localização dos veículos de comunicação para identificar seu público-alvo.
Trinta pessoas/veículos em 15 municípios responderam o questionário. Com esse trabalho, conta Fontoura, foi possível saber que cerca de 70% dos respondentes não tinham plano de contingência para o enfrentamento da enchente, 90% deles foram atingidos pela catástrofe de alguma forma, 67% tiveram o local de trabalho invadido pela água, 83% tiveram perda de equipamentos e todos perceberam impacto sobre a saúde mental dos repórteres.
Também foi possível saber que as equipes não dispunham de equipamento de proteção individual (EPI) e improvisaram com o que dispunham em casa ou o que conseguiam emprestado. Muitos dos jornalistas que trabalharam na cobertura da enchente necessitaram utilizar abrigo público em algum momento ou recorrer a casa de amigos e parentes. Uma equipe do jornal Correio do Povo, que estava em deslocamento no interior do estado, foi pega de surpresa com a interdição de estradas e levou 10 dias para conseguir voltar a Porto Alegre. Durante esse período, a equipe utilizou dois alojamentos públicos.
Os dados da pesquisa ainda estão sob análise. Assim que forem consolidados, a pesquisa ficará disponível para consultas no site da Ajor, o que deve acontecer no próximo mês de julho, informa Fontoura.
A imprensa na COP30
A cobertura de uma conferência internacional sobre o clima não é fácil. A próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, COP30, será realizada em novembro na capital do Pará, Belém. Sobre este tema, também tratado no seminário, falou o comunicador Marcos Wesley, coordenador do site Tapajós de Fato e assessor Político e Institucional do Comitê da COP30.
O comunicador explicou a dificuldade de o da imprensa aos locais de negociação das autoridades e os diversos eventos paralelos e simultâneos organizados pela sociedade civil no âmbito da COP.
“Há muito mais sobre o que refletir enquanto o Brasil se prepara para a COP30. Para alcançarmos a meta climática estabelecida, de não superar em 1,5 grau centígrados a temperatura na Terra, é fundamental envolver os diferentes níveis de governos e a sociedade civil em torno de cinco temas centrais: adaptação climática, restauração ecológica, sistemas alimentares, demarcação territorial e governança climática”, explicou Wesley. Mas, deixou claro que a meta de 1,5 grau, na realidade, já foi ultraada. O objetivo, agora, é não ultraar ainda mais esse marco.
Ele destaca que, em relação à adaptação, por exemplo, é preciso ter cidades mais sustentáveis e resilientes, já que 90% da população brasileira vive em espaços urbanos. Municípios em crescimento precisam de um “urbanismo de antecipação”, protegendo povos e comunidades tradicionais e promovendo o uso mais racional do solo.
Ele salientou também que os sistemas alimentares ocupam lugar central na discussão. A agricultura familiar responde por mais de 70% dos alimentos consumidos no Brasil, mas desmata-se cada vez mais, principalmente na Amazônia e no Cerrado, para expandir a agricultura e a pecuária, voltadas sobretudo para a exportação.
Por último, Wesley destacou que a governança climática é essencial para a definição de atribuições aos governos e à sociedade civil. Ele diz que “ainda que a entrega das metas estabelecidas seja de responsabilidade do governo federal, deve-se garantir o envolvimento das populações, dos órgãos de ciência e tecnologia e de entidades de fomento, construindo uma estrutura transversal transparente, onde haja diálogo entre os diferentes atores e saberes, com a circulação de informações relevantes”.
