O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) determinou que a União e a Fundação Cesgranrio refaçam o processo de heteroidentificação do servidor público Gustavo Amora no âmbito do "Enem dos concursos", no qual o candidato foi reprovado no sistema de cotas, segundo mostrou o Brasil de Fato em reportagem publicada no último dia 15. Autodeclarado negro e militante do movimento negro, ele havia obtido uma negativa judicial em primeira instância e recorreu, agora obtendo decisão favorável por parte do TRF-1.
No que se refere ao Poder Executivo, a liminar recai sobre o Ministério da Gestão e Inovação (MGI), gestor do concurso, e foi concedida pelo desembargador federal Newton Ramos, que anulou a decisão istrativa que negou a Amora o direito de ar o sistema de cotas. O magistrado determinou ainda que o candidato tenha participação garantida no curso de formação, fase atual do certame, caso tenha alcançado a pontuação exigida nas etapas anteriores, “até a conclusão da nova avaliação pela banca de heteroidentificação”. Ramos também fixou que a nova decisão a ser proferida pelo concurso deve contar com a “devida motivação”.
Diversos candidatos autodeclarados negros vêm criticando o Concurso Nacional Unificado (CNU) por terem recebido recusa para ingressar no sistema de cotas e não terem conseguido o ao parecer da banca que justifica a decisão. Diante do cenário, Gustavo Amora diz considerar a liminar como um o adiante na luta pela efetivação da política de cotas. Ele concorre ao CNU no bloco 4, que oferta vagas para diferentes carreiras na área de gestão, auditor-fiscal do Trabalho e outros postos.
Gustavo Amora é autodeclarado negro e militante do movimento negro / Arquivo pessoal
“Foi uma grande vitória, uma virada de jogo. Recebi um de alguns escritórios [de advocacia] que estão acompanhando casos e temos visto que foi a partir desse movimento todo de mostrar as ilegalidades do CNU que estamos conseguindo mudar o padrão das decisões [de casos] individuais no Judiciário. Acho que essa liminar foi uma vitória nesse sentido, e não uma vitória minha. Eu teria um gosto muito amargo em ter uma vitória individual nesse processo, pois sei da quantidade de pessoas que não têm a oportunidade de entrar na Justiça. O que eu percebi é que, a partir do meu caso, a gente mobilizou outras ações”, afirma o candidato.
Saga
Situações como a de Amora ajudam a ilustrar o imbróglio que tem vivido a política de cotas diante das bancas de heteroidentificação em diferentes concursos do país: a falta de uma padronização das avaliações feitas pelos certames tem provocado uma chuva de negativas a candidatos autodeclarados negros com uma consequente judicialização de parte dos casos. É o que ocorreu com o advogado Octávio Neto, que em 2024 não foi aceito pela banca do CNU como cotista e também recebeu negativa em agosto do ano ado para concorrer na mesma condição ao concurso da Caixa Econômica Federal (CEF), que agora está em fase final. Nos dois casos, a banca responsável pelas provas era a Cesgranrio.
No início deste ano, o candidato obteve, já em primeira instância, uma sentença favorável da Justiça Federal. Ao avaliar a ação, o juiz Leandro André Tamura citou entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do assunto e mencionou o voto em que o ministro Luís Roberto Barroso assinala que “quando houver dúvida razoável sobre o fenótipo [de um candidato], deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial”.
Octavio Neto, advogado, um dos candidatos que tiveram pedido recusado pelo CNU na banca de heteroidentificação / Arquivo pessoal
O entendimento foi firmado quando a Corte julgou e aprovou a validade da Lei nº 12.990/2014, que reserva a candidatos negros um total de 20% das vagas de concursos públicos realizados no âmbito da istração pública federal direta e indireta e dos três Poderes. A norma foi avaliada em 2017 por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, relatada por Barroso.
“Senti que a justiça foi feita. Senti que a política pública foi resumida de maneira excepcional nesse pequeno trecho do voto do ministro Barroso [citado na sentença]. Eu não me declaro pessoa parda para burlar concurso. Eu me declaro pardo porque realmente sou. E, se há no mínimo uma dúvida razoável sobre se a pessoa é ou não negra, não é uma banca de heteroidentificação que deve defini-la”, argumenta Octavio Neto. Ele conta que, ao se deparar com a decisão da Justiça Federal, foi tomado por um misto de sentimentos. Na banca de heteroidentificação que o analisou houve divergência de entendimento entre os cinco avaliadores.
“Senti também revolta. Isso é óbvio. Se duas pessoas me consideraram negro e três me consideraram branco, eu não posso ser considerado pessoa branca. A própria banca demonstra a dúvida razoável em sua própria escolha, o que também é absurdo porque, se eles fossem um pouco mais capacitados, a discussão sobre se eu sou ou não branco nem existiria. Não há dúvidas. É só olhar pras minhas fotos.” Na última semana, ao se deparar com mais uma negativa da banca do CNU em sua decisão final sobre o processo, Octavio Neto conta ter desistido de judicializar o caso porque considera mais vantajosos outros dois concursos nos quais foi aprovado.
"Mas o fato de eu ter desistido não inibe a ilegalidade [da situação]. Se eu ei, tenho o direito de escolher ir para um cargo ou para outro concurso. Tiraram isso de mim negando minha cor pela segunda vez", queixa-se. O advogado diz esperar uma maior qualificação das bancas de heteroidentificação de concursos como forma de pôr fim ao embaraço relacionado aos candidatos a cotistas. “[Tem que ter] transparência e capacitação dos membros. Esses dois pontos resumem o que deveria ser feito para mitigar as falhas. E, claro, [desejo] que a lei seja cumprida. Se a lei tivesse sido seguida nos meus dois casos, nada disso precisaria estar sendo discutido.”
Frentes
O imbróglio em torno do sistema de cotas do CNU tem vivido diferentes ramificações, com acompanhamento do caso por parte da Defensoria Pública da União (DPU) e do Ministério Público Federal (MPF). Paralelamente, a organização Educafro ingressou com uma ação civil pública (A) nesta segunda-feira (10), na Justiça Federal, para pedir que a União e a Cesgranrio sejam condenadas a revisar os pareceres de heteroidentificação do concurso e a se retratar “reconhecendo que o CNU cometeu falhas, não sendo os candidatos negros responsabilizados pelos equívocos”.
A A pede ainda que seja aberta nova data para envio dos títulos de candidatos eventualmente prejudicados por erros cometidos pela banca e também que a Polícia Federal investigue o que a Educafro qualifica como “prática de racismo institucional no CNU, as falhas e o cumprimento do contrato de prestação de serviços pela Cesgranrio”. Por fim, a entidade pede que seja criada uma “composição mista de gestão de concursos público” com representantes do MGI, dos Ministérios da Igualdade Racial (MIR) e dos Direitos Humanos (MDHC) e que o edital da segunda edição do CNU seja lançado somente após a superação dos problemas atuais com os cotistas. O MGI e a Cesgranrio ainda não se manifestaram sobre o assunto.
“Acho que, talvez, essa ação civil pública possa ajudar a mudar o jogo e trazer uma decisão coletiva e uma solução para todo mundo, trazendo efeitos para todos. Mas, além disso, eu espero que a decisão que obtive do TRF-1 possa também apontar um caminho para outras decisões do Judiciário, mas que elas não sejam simplesmente de anular um ato istrativo e inserir o candidato no processo porque essa é uma solução mais fácil, mas é um processo precário. Não dá para achar que quem se considerar injustiçado por uma banca tem que ir à Justiça. Imagine pensar isso em uma escala de avaliação para o Brasil inteiro. São milhares de envolvidos”, argumenta Amora, ao defender que o Estado consolide uma solução mais consistente para o andamento das bancas.